Em todos os meus anos de profissão
como terapeuta foi o único caso que conheci tanto entre os meus pacientes,
quanto dos meus colegas. Lembro-me como se fosse hoje a primeira vez que Gabriel
pisou no meu consultório. Ele tinha 13
anos e estava acompanhado dos pais. A mãe dizia que não entendia uma palavra
sequer do que ele dizia, que já tinha consultado os professores da escola que
contaram a ela sobre o dia que de repente Gabriel passou a falar espanhol. Era
como se fosse a língua materna dele e que se tratava de um espanhol muito bom.
Contaram, ainda que ele se recusava a aprender e até mesmo se comunicar em
língua portuguesa. O pai desconsolado pedia, por favor, para que eu desse uma
solução para o problema deles, pois não conseguiam mais comunicar com seu filho
por não saberem nem o português estudado na escola, quiçá espanhol. Ainda que
soubesse muito pouco falar em espanhol, disse que faria uma consulta inicial
com o garoto.
E esse primeiro contato nosso posso
resumir em uma única palavra: fracaso.
Assim mesmo, com um “s” só, em español.
Eu tentava falar em português e ele não me respondia. Arrisquei um pouco um
portunhol, que foi o que restou de um estudo de anos atrás de espanhol que
nunca mais pratiquei. Fui tentando falar
devagar em palavras claras em português na tentativa de que Gabriel pudesse ao
menos se abrir ao diálogo e expliquei que esse nosso espaço era importante para
que ele mesmo se compreendesse como pessoa e desse certo com seus pais e seu
convívio social, já que não são poucos os que falam aquela língua assumida por
ele. Após quase uma hora de monólogo,
Gabriel se rendeu. Não me recordo mais o que usei para que ele se convencesse,
mas consegui arrancar dele: “Yo no
comprendo bien portugués pero intentaré hablar con usted”. Aquelas palavras
selaram um pacto. Gosto de casos que me instigam e me fazem superar aquilo que
um dia eu já fiz. E que também seja útil para a pessoa, claro! Desde esse dia
comecei a estudar espanhol de novo e retomar o estudo foi tão importante
naquele processo que eu ficava ansioso cada vez que via na minha agenda que
chegava perto o dia de Gabriel ir ao meu encontro.
Não conseguiria reproduzir aqui
nenhum diálogo que tivemos. Ainda que você, leitor, falasse bem o espanhol, não
entenderia. Tão envolvido naquela mistura de idiomas, eu me perdia. Além das
histórias que me envolviam, quando eu não entendia as palavras, recorria aos
olhos e à linguagem corporal dele. E o olhar era o que mais me intrigava. Ele
tinha um olhar fixo que às vezes parecia que ele me analisava e não o
contrário. Aqueles olhos verdes, por mais fixos que fossem, eram como o mar do Caribe
que vi apenas em fotos de revista. E por mais profundo que fosse, o olhar vinha
em ondas, algumas vezes com um fechar de pálpebras bem devagar, retomando a
paciência dele para que nos compreendêssemos naquela desordem.
Falamos de muitas histórias.
Lembro-me bem de uma que ele contou sobre seu primeiro anos de escola após o
maternal. Ele teve um amigo de escola que se chamava Rafael. Digo que chamava,
pois nem ele sabia mais onde Rafael está hoje e o que tinha acontecido com ele
desde que ele não apareceu no segundo ano. Não sabemos nem se ele está vivo. Eles
eram daqueles amigos que dividam o lanche e os lápis de cor. Gabriel me contou
que muitas vezes ele coloria seus desenhos mais rápido para ver o capricho com
que Rafael faria os dele. Assumiu que nunca tinha sido bom em colorir e que o
fascínio era ver cada escolha de cores e combinações que os dedos de Rafael
confeririam às imagens. Uma vez ele disse que mordeu a mão de Rafael. Perguntei
o porquê e ele não soube dizer. Falou apenas que era uma vontade que tinha e
que isso custou um tempo sem se falar com Rafael. Mas como as crianças são
generosas, logo ele me contou diversas histórias que aconteceram depois. O que
mais me impressionou era o calor das lembranças de Gabriel. Mesmo após muitos
anos, a memória sobre seu amigo de infância era muito forte. Quando pedi apenas
para imaginar como estaria Rafael hoje, percebi que os olhos de mar se
arrebataram em ondas, aparentemente calmas, porém muito violentas para mim. Eu
estava muito envolvido e isso foi muito perigoso. Nesse dia me recordo que
terminei a sessão o mais rápido que pude.
Em muitos momentos pensei que fosse
dispensar o Gabriel das minhas sessões por não me sentir apto a continuar. O
problema de falar apenas espanhol permanecia e eu sempre tentava abordar o
assunto, mas ele fugia.
Outra história que me marcou muito
(e confesso que chorei ao chegar em casa) foi a da despedida de Gabriel da sua
avó. Ele contou que ela partiu do nada. Estava em casa boa, no dia anterior
tinha feito sua comida predileta e de repente foi. No velório ele ganhava
abraços, mas ficava com um pouco de ciúmes, pois ganhava menos que sua mãe. Ele
disse que tudo bem, afinal ela havia perdido a mãe dela. Mas ele gostaria de
mais braços e aconchego do que os que ganhou. Contou que sempre que olhava pra
sua avó ali e não acreditava, olhava nas mãos dela um anel que ela tinha e que
levaria com ela pra toda eternidade. Ele me contou todas as vezes que lembrava
daquele anillo e pra isso foram, pelo
menos, umas duas sessões só daqueles episódios. Diz ele que era um anel
simples, com pedras verdes. Não sabia se era pequenas esmeraldas ou apenas
bijuteria, mas pra ele não importava. Imaginei eu que o anel fosse da cor dos
olhos do menino e imagino, também, o quanto esses olhos choraram naquela
partida.
O tempo foi passando e quando
percebi já tínhamos um ano. Aquele contato semanal ainda mexia muito comigo e
eu me intrigava que Gabriel não voltava a falar português e sempre me preocupei
como seria isso com seus pais caso eu encerrasse naquele momento. Eles
continuavam se queixando e cobrando muito e eu comecei a focar mais nisso. Um
dia, finalmente chegamos no motivo de todo esse imbróglio. Gabriel me contou,
ao acaso, que antes de ele acordar falando espanhol o que de fatídico aconteceu
na sua vida foi que ele se enamoró
por uma pessoa. Engraçado que nunca tínhamos falado de suas paixões mais
secretas, ele mesmo que resolveu falar. A sua falta de habilidade em puxar uma
conversa ou a coragem de arriscar te impediu de estabelecer um contato e ele
disse não saber nem o nome. Tentou descobrir de todas as formas, mas lhe
faltaram amigos que ajudassem e o encorajasse. E um dia, de repente, percebeu
que a presença daquela pessoa já não se dava mais nos espaços que eles se
esbarravam. Como a juventude traz tantos problemas que apenas um iHola! resolveria...
Descobri,
a partir disso, a causa de Gabriel acordar de repente falando espanhol e propus
que nosso acompanhamento se encerrasse naquele dia por estar solucionado. Conversei
com os pais e falei que não teria melhor solução para o caso que a família se adaptar e aprender a comunicar com ele, pois se eu tinha
conseguido, todos conseguiriam. A causa do problema foi muito maior que a
consequência. Descobri, também, que o cérebro de Gabriel entendeu que algumas palavras
em português não têm tradução, uma em especial era muito pesada para ele e isso aflorou o seu espanhol que antes não existia. O pior foi Gabriel sair assim da
minha vida. Ahora yo no hablo portugués.