segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

Saudade


Em todos os meus anos de profissão como terapeuta foi o único caso que conheci tanto entre os meus pacientes, quanto dos meus colegas. Lembro-me como se fosse hoje a primeira vez que Gabriel pisou no meu consultório.  Ele tinha 13 anos e estava acompanhado dos pais. A mãe dizia que não entendia uma palavra sequer do que ele dizia, que já tinha consultado os professores da escola que contaram a ela sobre o dia que de repente Gabriel passou a falar espanhol. Era como se fosse a língua materna dele e que se tratava de um espanhol muito bom. Contaram, ainda que ele se recusava a aprender e até mesmo se comunicar em língua portuguesa. O pai desconsolado pedia, por favor, para que eu desse uma solução para o problema deles, pois não conseguiam mais comunicar com seu filho por não saberem nem o português estudado na escola, quiçá espanhol. Ainda que soubesse muito pouco falar em espanhol, disse que faria uma consulta inicial com o garoto.
E esse primeiro contato nosso posso resumir em uma única palavra: fracaso. Assim mesmo, com um “s” só, em español. Eu tentava falar em português e ele não me respondia. Arrisquei um pouco um portunhol, que foi o que restou de um estudo de anos atrás de espanhol que nunca mais pratiquei.  Fui tentando falar devagar em palavras claras em português na tentativa de que Gabriel pudesse ao menos se abrir ao diálogo e expliquei que esse nosso espaço era importante para que ele mesmo se compreendesse como pessoa e desse certo com seus pais e seu convívio social, já que não são poucos os que falam aquela língua assumida por ele.  Após quase uma hora de monólogo, Gabriel se rendeu. Não me recordo mais o que usei para que ele se convencesse, mas consegui arrancar dele: “Yo no comprendo bien portugués pero intentaré hablar con usted”. Aquelas palavras selaram um pacto. Gosto de casos que me instigam e me fazem superar aquilo que um dia eu já fiz. E que também seja útil para a pessoa, claro! Desde esse dia comecei a estudar espanhol de novo e retomar o estudo foi tão importante naquele processo que eu ficava ansioso cada vez que via na minha agenda que chegava perto o dia de Gabriel ir ao meu encontro.
Não conseguiria reproduzir aqui nenhum diálogo que tivemos. Ainda que você, leitor, falasse bem o espanhol, não entenderia. Tão envolvido naquela mistura de idiomas, eu me perdia. Além das histórias que me envolviam, quando eu não entendia as palavras, recorria aos olhos e à linguagem corporal dele. E o olhar era o que mais me intrigava. Ele tinha um olhar fixo que às vezes parecia que ele me analisava e não o contrário. Aqueles olhos verdes, por mais fixos que fossem, eram como o mar do Caribe que vi apenas em fotos de revista. E por mais profundo que fosse, o olhar vinha em ondas, algumas vezes com um fechar de pálpebras bem devagar, retomando a paciência dele para que nos compreendêssemos naquela desordem.
Falamos de muitas histórias. Lembro-me bem de uma que ele contou sobre seu primeiro anos de escola após o maternal. Ele teve um amigo de escola que se chamava Rafael. Digo que chamava, pois nem ele sabia mais onde Rafael está hoje e o que tinha acontecido com ele desde que ele não apareceu no segundo ano. Não sabemos nem se ele está vivo. Eles eram daqueles amigos que dividam o lanche e os lápis de cor. Gabriel me contou que muitas vezes ele coloria seus desenhos mais rápido para ver o capricho com que Rafael faria os dele. Assumiu que nunca tinha sido bom em colorir e que o fascínio era ver cada escolha de cores e combinações que os dedos de Rafael confeririam às imagens. Uma vez ele disse que mordeu a mão de Rafael. Perguntei o porquê e ele não soube dizer. Falou apenas que era uma vontade que tinha e que isso custou um tempo sem se falar com Rafael. Mas como as crianças são generosas, logo ele me contou diversas histórias que aconteceram depois. O que mais me impressionou era o calor das lembranças de Gabriel. Mesmo após muitos anos, a memória sobre seu amigo de infância era muito forte. Quando pedi apenas para imaginar como estaria Rafael hoje, percebi que os olhos de mar se arrebataram em ondas, aparentemente calmas, porém muito violentas para mim. Eu estava muito envolvido e isso foi muito perigoso. Nesse dia me recordo que terminei a sessão o mais rápido que pude.
Em muitos momentos pensei que fosse dispensar o Gabriel das minhas sessões por não me sentir apto a continuar. O problema de falar apenas espanhol permanecia e eu sempre tentava abordar o assunto, mas ele fugia.
Outra história que me marcou muito (e confesso que chorei ao chegar em casa) foi a da despedida de Gabriel da sua avó. Ele contou que ela partiu do nada. Estava em casa boa, no dia anterior tinha feito sua comida predileta e de repente foi. No velório ele ganhava abraços, mas ficava com um pouco de ciúmes, pois ganhava menos que sua mãe. Ele disse que tudo bem, afinal ela havia perdido a mãe dela. Mas ele gostaria de mais braços e aconchego do que os que ganhou. Contou que sempre que olhava pra sua avó ali e não acreditava, olhava nas mãos dela um anel que ela tinha e que levaria com ela pra toda eternidade. Ele me contou todas as vezes que lembrava daquele anillo e pra isso foram, pelo menos, umas duas sessões só daqueles episódios. Diz ele que era um anel simples, com pedras verdes. Não sabia se era pequenas esmeraldas ou apenas bijuteria, mas pra ele não importava.  Imaginei eu que o anel fosse da cor dos olhos do menino e imagino, também, o quanto esses olhos choraram naquela partida.
O tempo foi passando e quando percebi já tínhamos um ano. Aquele contato semanal ainda mexia muito comigo e eu me intrigava que Gabriel não voltava a falar português e sempre me preocupei como seria isso com seus pais caso eu encerrasse naquele momento. Eles continuavam se queixando e cobrando muito e eu comecei a focar mais nisso. Um dia, finalmente chegamos no motivo de todo esse imbróglio. Gabriel me contou, ao acaso, que antes de ele acordar falando espanhol o que de fatídico aconteceu na sua vida foi que ele se enamoró por uma pessoa. Engraçado que nunca tínhamos falado de suas paixões mais secretas, ele mesmo que resolveu falar. A sua falta de habilidade em puxar uma conversa ou a coragem de arriscar te impediu de estabelecer um contato e ele disse não saber nem o nome. Tentou descobrir de todas as formas, mas lhe faltaram amigos que ajudassem e o encorajasse. E um dia, de repente, percebeu que a presença daquela pessoa já não se dava mais nos espaços que eles se esbarravam. Como a juventude traz tantos problemas que apenas um iHola! resolveria...
Descobri, a partir disso, a causa de Gabriel acordar de repente falando espanhol e propus que nosso acompanhamento se encerrasse naquele dia por estar solucionado. Conversei com os pais e falei que não teria melhor solução para o caso que a família se adaptar e aprender a comunicar com ele, pois se eu tinha conseguido, todos conseguiriam. A causa do problema foi muito maior que a consequência. Descobri, também, que o cérebro de Gabriel entendeu que algumas palavras em português não têm tradução, uma em especial era muito pesada para ele e isso aflorou o seu espanhol que antes não existia. O pior foi Gabriel sair assim da minha vida. Ahora yo no hablo portugués.


Caminham por aqui.